A cultura do estupro, entre o cinema e a vida real

Com “Bela Vingança”, Hollywood fortalece as batalhas do MeToo e ajuda a desconstruir mitos da violência sexual, mas a realidade segue feroz com as mulheres
“Bela Vingança” (Promising Young Woman), vencedor do Oscar de melhor roteiro original e indicado a cinco estatuetas, conta a história de Cassie (Carey Mulligan), que finge fragilidade ao se passar por moça embriagada em boates e, assim, ser isca fácil para abusadores na pele de bons moços. Não é incomum tipos masculinos se aproveitarem de mulheres em situação vulnerável. Por isso, a intenção dela é puni-los. Por traumas de estupro, Cassie quer vingança. O enredo do filme, em cartaz no Brasil, significa uma virada de Hollywood no tratamento da cultura do estupro. A ficção criada por Emerald Fennell olha para a violência sexual a partir de um problema sistêmico em vez de casos individuais.
A protagonista é empoderada em uma trama alinhada com a era do movimento #MeToo. O longa é diferente de filmes que abordam o tema e destacam a masculinidade, as cenas explícitas de violência contra a mulher, até às vezes sugerindo um teor sensual, e que traz o vilão abusador como alguém quase sempre desconhecido da vítima. Bela vingança é uma ficção feminista, que consolida batalhas do MeToo, nascido a partir dos horrendos bastidores revelados por atrizes do cinema. O filme representa um novo olhar do cinema para a causa.
Infelizmente, entre o cinema e a vida real ainda há uma distância considerável. É longa estrada a ser percorrida. Em pleno século 21, as vítimas da violência sexual e do machismo histórico que estupra e mata costumam enfrentar humilhações mesmo depois de passarem pelo ato violento. A realidade segue feroz com as mulheres.
Um exemplo recente no Brasil, entre tantos casos, é o da catarinense Mariana Ferrer, que foi esquecida no furacão da pandemia após sua causa mobilizar o país no final de 2020. A jovem então com 21 anos que iniciava a vida como influenciadora digital ainda sofre – inclusive com a saúde – depois de ter sido atacada no julgamento sobre o estupro do qual foi vítima e que absolveu o réu. Ela acusa o empresário André Aranha de tê-la violentado.
Em novembro, ganhou notoriedade um vídeo publicado pelo site Intercept sobre o tratamento recebido pela jovem durante audiência para o julgamento. A cena e o termo cunhado “estupro culposo” para justificar a falta de provas do ato criminoso provocaram indignação e reação do Conselho Nacional de Justiça e severas críticas de ministros de tribunais superiores. Veículos de imprensa noticiaram amplamente.
O Jornal Nacional repercutiu imagens divulgadas pelo Intercept da atuação do advogado do réu, Gastão da Rosa Filho, nas audiências de instrução do processo, com ataques covardes a Mariana. Ele a insultou exibindo fotos da jovem postadas nas redes sociais sem qualquer relação com o caso. Fez juízo de valor das fotografias, afirmando injuriosamente que ela “chupava o dedinho em posições ginecológicas”. Mariana reagiu com sobriedade dizendo que o advogado tinha idade para ser pai dela e que deveria se ater aos fatos. Ele prosseguiu: “Não tenho uma filha do seu nível. E também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher como você”. É chocante rever as imagens. Mariana chora diante do juiz, que não interviu, e o advogado prossegue os ataques dizendo que são “lágrimas de crocodilo”.
Como se aquilo fosse normal, o promotor pergunta se ela precisa de tempo para se recompor. E Mariana implora ao juiz por respeito. Ao JN, a Procuradoria da Justiça informou à época que apuraria a conduta do juiz. A corregedoria nacional do ministério público também disse que analisaria a atuação do ministério público de Santa Catarina. O Senado Federal aprovou um voto de repúdio ao advogado, ao juiz e ao promotor por exporem a vítima ao sofrimento. O ministro Gilmar Mendes, do STF, disse no Twitter que as cenas da audiência são estarrecedoras: “O sistema de justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais tortura e humilhação”.
A história começou há três anos. Na noite de 15 de dezembro de 2018, a jovem denunciou André Aranha por tê-la estuprado dentro de um clube em Florianópolis, o Café de La Musique. Ficou atestado que ela era virgem. Em suas roupas, a perícia encontrou sêmen do acusado e sangue dela. Após André ter sido denunciado pelo Ministério Público de Santa Catarina pelo crime de estupro de vulnerável, o promotor anterior deixou o caso e um novo promotor avaliou que Mariana não estava incapacitada para consentir o ato sexual e por isso não haveria dolo, ou a intenção de forçar relações sexuais com ela. Em setembro de 2020 a justiça de Santa Catarina inocentou André Aranha. Mariana e seus pais estão recorrendo.
A câmara aprovou dia 16 de março de 2021 a lei Mariana Ferrer, projeto que pune ofensa à vítima durante o julgamento. Senado ainda precisa aprovar. A lei visa coibir especialmente a prática de atos que ofendam vítimas de crimes contra a dignidade sexual. Mas Mariana segue sem que a justiça tenha sido feita. Segundo sua mãe, ela teve depressão e desenvolveu síndromes nervosas. Mudaram-se de casa, e ela pouco sai. O assunto caiu no esquecimento, mas o sofrimento de Mariana, não.
Esquecer Mariana Ferrer é como esquecer as mulheres vítimas de violência. Temos que apoiá-la para que a Justiça, em outras instâncias, faça a reparação necessária. É preciso ter fé no Poder Judiciário, retomar as mobilizações e o sentimento de indignação que tomou conta de todos nós. Vamos torcer para que filmes como “Bela Vingança”, que vai muito além de um ótimo entretenimento, passem a ressignificar o enfrentamento da violência contra a mulher como uma causa sistêmica. O que vivemos nessa esfera é tambem uma pandemia para a qual precisamos ter vacinas igualmente. Vamos lutar para que se faça justiça às vítimas, sem deixar que elas se vitimizem ou se enfraqueçam no longo caminho pela reparação. As vítimas não devem se sentir esquecidas nem sozinhas. Porque esquecê-las é o mesmo que esquecer a luta de todos nós.
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