Quando o pai bate na mãe
Os filhos da violência doméstica também são vítimas do agressor. O Brasil ignora as crianças que testemunham suas mães em situação de perigo dentro de casa. Elas carregam consequências por toda a vida e precisam de atendimento e proteção
Eu me lembro como se fosse ontem. Um flash me vem nítido na memória. Tinha sete ou oito anos e ainda vivia com minha família em Itaporã, no Matogrosso do sul, onde nasci. Tentei algumas vezes proteger minha mãe das agressões do meu pai. Ele sofria de alcoolismo e, quando bebia, meu pai brigava, ameaçava e batia na minha mãe. Eu era a única filha entre meus cinco irmãos que entrava na frente dela na tentativa de protegê-la do meu pai, que eu também amava. Essa história tem 50 anos e ainda me dói. São lembranças que marcaram minha infância tanto quanto a violência doméstica que sofri na maturidade dos meus 54 anos. As crianças também são vítimas indiretas de um agressor. E carregam consequências por toda a vida.
Eu era pequena quando, ao lado de minhas quatro irmãs e do meu irmão, vi meu pai pegar um revólver que guardava em casa e mirá-lo na direção de minha mãe, ameaçando matá-la. Pouco me lembro das razões exatas da briga, mas ainda hoje reconstituiria a cena em detalhes. Ele era um homem ciumento. Tudo era motivo para agredi-la. Naquela hora, lembro do meu pavor de criança. Achei que ele realmente fosse matá-la.
Foi um momento tenso para todos nós. Meu pai imediatamente desviou o revólver apontado para minha mãe e atirou na parede da sala. A bala ficou ali alojada no reboco. Ele foi dormir. Minha mãe, triste, fez o jantar e ficou em um canto da casa. Fomos deitar. No dia seguinte, nenhuma palavra sobre o assunto. Assim era o jeito que ela conseguia lidar com a aquela situação dramática e conosco. Creio que tentava nos proteger dessa forma, com o silêncio. Fingíamos que nada havia acontecido. Mas era uma rotina tensa.
Em outra ocasião, a cena com o revólver se repetiu. Morávamos na zona rural e criávamos animais no quintal. Tínhamos um porco, que criávamos para assar no Natal. Isso era comum no interior. Meu pai pegou o revólver e, furioso com a minha mãe por algo que não tenho mais lembranças, novamente apontou a arma para ela e depois disparou um tiro contra o animal. Lembro até hoje do grunhido agudo antes do bicho morrer. No dia seguinte, como um ato banal e sem maiores consequências, minha mãe cozinhou o porco como se nada tivesse acontecido. Mas nenhum de nós, filhos, quis comer.
A gente tentava superar os problemas, mas a vida seguiu assim por muitos anos. Até hoje não gosto de Natal. Meu pai bebia e eu lembro de brigas terríveis nessa data. Uma vez um espeto de churrasco foi usado por ele como arma. Ela correu e se trancou no quarto. Estava tão transtornado que, com raiva, cravou o utensílio com toda a força no próprio punho esquerdo. Embora fosse violento com a minha mãe, ele não agredia as filhas.
Tudo isso me despertava sentimentos contraditórios na infância. Ao mesmo tempo que temia que minha mãe fosse morta, eu tinha pavor que meus pais se separassem. Para uma criança que possivelmente não compreendia a dimensão e a gravidade da violência cometida, a ideia da separação parecia ainda mais desesperadora. Tinha medo que meu pai fosse embora e eu nunca mais o visse.
Ao longo dos anos, a criança que eu fui não sabia bem quando o pânico era maior: ou quando meu pai ameaçava matar minha mãe ou quando ela dizia que ia se “desquitar” dele. Quando ele não estava alcoolizado, meu pai era uma pessoa extraordinária. Gosto de lembrar quando ele me dava responsabilidades ainda pequena, como ir pagar uma nota promissória na cidade. Eu me sentia importante. São sentimentos infantis que precisam ser compreendidos num contexto assim.
Um dos grandes conflitos que tive na vida foi o dia em que minha mãe resolveu partir sozinha com os filhos para o Rio de Janeiro. Ela não aguentava mais tanta violência. E queria uma nova vida. Me lembro que ela tomou o ônibus em Campo Grande (MS) conosco, os seis filhos. Duas paradas depois, uma surpresa: meu pai subiu no ônibus e disse que iria junto conosco para o Rio. Ao mesmo tempo que eu me compadecia e me solidarizava com a minha mãe. Mas confesso que senti um certo alívio de saber que ele embarcaria conosco naquela aventura para um lugar desconhecido.
Meus pais viveram sob o mesmo teto por 24 anos. As dificuldades eram imensas no Rio e as brigas prosseguiram. Eles se separaram quando, em mais uma agressão, minha mãe teve finalmente a coragem de denunciar. Ela fez um B.O. e meu pai passou uma noite preso. Ele voltou para casa no dia seguinte. Talvez nem tenha sido a violência mais grave sofrida. Mas acredito que sua gota d’água finalmente transbordou. Creio que aconteceu com ela o que acontece com todas as mulheres que passam por isso. O dia que você decide tomar uma atitude em algum momento chega. Você nunca sabe bem quando. Mas é um dia D que finamente chega. O dia de dar um basta. É uma coragem genuína e repentina. Chegou o dia em que a minha mãe, depois de tantos anos, não viu mais sentido de manter o casamento com meu pai e pediu de fato a separação. Eu já tinha 18 ou 19 anos. Estava no meu início de carreira como modelo.
Ele voltou para o Matogrosso do Sul. Vivia de vender terras. Eu passei a ajudar financeiramente minha mãe e meus irmãos, que continuaram no Rio. Ele se orgulhava da filha famosa. Mas nos víamos pouco. Meu pai morreu aos 58 anos, seis anos depois da separação da minha mãe. Morreu do coração, com complicações de saúde decorrentes do alcoolismo.
Revisitar a história é isso. Imagine o quanto nós, filhos, suportávamos aquela rotina, presenciando a violência e o abuso psicológico, achando que a vida era aquilo. Assistíamos aquilo, rezávamos para tudo acabar, e no dia seguinte seguíamos a vida normal. Acho que minha mãe só de fato superou tudo o que viveu quando eu me manifestei publicamente sobre a violência doméstica que sofri. Antes, era como se existisse um consenso mútuo e mudo – porque não falávamos – de toda a nossa história familiar. Quando fiz a denúncia, contudo, abriu-se um espaço para haver uma reparação que também incluía a história dela. Isso, logicamente, impactou toda a família.
O que conto sobre a minha história é muito comum em várias regiões do Brasil. É importante que se desenvolvam políticas públicas para os filhos da violência. É a forma de resgatá-los de traumas e evitar que esses padrões se repitam. Ser testemunha ocular da violência que acontece dentro de casa configura o abuso psicológico em si. A Lei Maria da Penha, criada há 12 anos, tem sido importante. Um avanço recente é a escuta protegida a menores. A lei garante o depoimento uma única vez, em um lugar acolhedor. E prevê ainda que os filhos tenham direito a medidas protetivas contra o agressor.
Mas, no geral, pouco se avançou em políticas voltadas para as consequências sofridas pelos filhos de mulheres agredidas. Muitos deles são órfãos do feminicídio. Neste momento, milhares de crianças estão sendo expostas em seus lares a essa triste cena: ver o pai bater na mãe. Precisamos falar sobre isso. Com rigor, responsabilidade e urgência.
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