Salvar crianças do abuso é salvar nosso futuro
A violência sexual infantil segue acontecendo. É preciso que a sociedade acorde e reaja
A violência sexual contra crianças e adolescentes representa uma terrível violação dos direitos humanos, um crime de alta gravidade e uma ameaça à saúde. Qualquer estupro é hediondo e deve ser severamente combatido. Mas a violência sexual contra crianças e vulneráveis é de uma atrocidade que nos faz pensar no caldeirão abjeto das notícias e do mundo obscuro que nos envergonha. O Brasil não pode mais se anestesiar nem se resignar diante desse horror. Como mãe, me sinto esfacelada ao tomar conhecimento de tantas histórias assim. Como mulher e ativista, me sinto no dever de seguir chamando a atenção para este tema diante do qual o Brasil, a sociedade civil, as autoridades e os governos não podem se eximir.
Não podemos abandonar nossas crianças e adolescentes dessa forma. Há pouco mais de dois meses o Brasil acompanhou o drama de uma menina de 10 anos que engravidou após ser estuprada frequentemente desde os seis anos por um tio. Não bastasse ter sido vítima desse crime bárbaro, a criança viveu a violência do julgamento público, da exposição e de uma polêmica injustificada ao passar por um aborto legal. Este caso foi muito simbólico, mas seu desfecho na mída em agosto não encerra o tema. Nem terminam por aí os sinais de alerta. Seguem acontecendo diariamente por inúmeras regiões do Brasil histórias de estupros e abusos infantis como o da menina capixaba, que precisou viajar para Recife para realizar o procedimento permitido por lei. Essa realidade não pode ser banalizada.
Em consequência do meu trabalho de enfrentamento à violência contra a mulher, venho recebendo de forma crescente e regular pelas minhas redes sociais denúncias de abuso sexual infantil tanto de meninas quanto de meninos. Tento, de alguma forma, encaminhar todas as denúncias aos órgãos competentes e ao Ministério Público. Mas isso não basta. É necessário criar sistemas de alerta de forma constante e ampla. Esse tipo de violência é muito difícil de ser combatida, até por ser na maioria das vezes encoberta dentro dos lares. É lastimável, mas é verdade. Campanhas maciças precisam conscientizar as famílias para atentar para este perigo dentro de casa.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, publicado recentemente, o crime de estupro é registrado a cada 8 minutos. Entre as 85,7% vítimas mulheres estupradas, quase 60% têm menos de 13 anos, 70,5% são vulneráveis e, em 84,1% dos registros, a vítima sofre abuso de pessoas próximas a ela e à família.
Existe uma responsabilidade a ser cobrada dos governos, do poder legislativo e da magistratura. Devemos fazer um chamamento às autoridades e à sociedade civil. Como enfatizou em artigo recente na Folha de S.Paulo, a deputada federal Tábata Amaral, “nossos professores não têm formação ou incentivo para o ensino da educação sexual, dado que algumas pessoas insistem em não entender que isso nada tem a ver com o que chamam de erotização infantil”. O debate nas escolas de alguma forma poderia ajudar a evitar abusos e mesmo ser um primeiro passo para criar espaços para denúncias, uma vez que o silêncio é a maior garantia para a impunidade prevalecer e para os casos ganharem tamanha escala.
As repercussões dessa forma de violência são profundas. É um dano psicológico para toda vida. Além da gravidade sob o ponto de vista do trauma e da saúde mental, é uma questão vital e fisiológica de saúde. É um fator de risco que repercute em eventuais gestações, em complicações e muitas vezes em casos de partos de alto risco, doenças sexualmente transmissíveis, e a morte.
A infância e a inocência não podem ser destruídas dessa forma. A certeza da impunidade do abusador não pode permanecer. Mães que não querem enxergar situações que ocorrem com seus filhos, diante de um padrasto abusador ou mesmo pai ou tio, precisam cair em si. São seus filhos e devem ser protegidos. Isso não é normal. Mães, acordem. A dor de seus filhos será perene. Suas crianças devem ser protegidas e merecem viver felizes e saudáveis. Devem brincar e estudar. A vida as espera cheia de cores, por mais que haja outras dificuldades. Assim deve ser. A violência não pode ser banalizada. Salvar nossas meninas e meninos é salvar nosso futuro. Basta de abuso.
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