Cultura do cancelamento: linchamento virtual e a saúde mental dos envolvidos

De Anitta a J.K. Rowling, certamente você já deve ter acompanhado nas redes sociais um famoso influencer ou até um desconhecido sendo “cancelado”. O termo “cancelamento” surgiu em 2019 e, desde então, vem ganhando força no meio virtual. Seu conceito significa deslegitimar, evitar, ignorar uma pessoa e o que ela produz, como consequência de um comportamento, fala ou ação que possa ter sido considerado grave.
O “tribunal virtual” causa danos irreparáveis para pessoas que cometem erros – aqui não se incluem processos criminais, penais e casos que cabem à justiça. Os danos para quem está sendo alvo do cancelamento podem ser psicológicos, desencadeando, inclusive, traumas e complicações sérias.
Para a psicóloga Bruna Brunetti, o cancelamento no meio digital — que é uma espécie de cyberbullying —, na maioria das vezes, é motivado pela busca de atenção e aprovação social [de quem o faz]. “Esse senso de pertencimento na comunidade é um reforçador social, ou seja, quanto mais meu comportamento de julgar e excluir é apoiado por um grupo maior de pessoas, mais me sinto validado, me trazendo afirmação e poder. O meio digital apenas aumentou a busca por esse senso de pertencimento e, consequentemente, a exclusão rápida das pessoas que estão se mostrando ‘inadequadas’ e não merecedoras de pertencerem ao grupo”, afirmou.
Um exemplo de como ocorre, na prática, o cancelamento de alguém, envolveu a influencer brasileira Gabriela Pugliese, que, ano passado, em meio à pandemia do novo coronavírus, realizou uma festa privada em sua casa, ignorando todas as recomendações dos órgãos de saúde. Antes de desativar suas redes sociais como consequência da grande repercussão negativa do fato, Pugliese perdeu em pouco tempo 100 mil seguidores no Instagram, além de patrocínios com grandes marcas e várias possibilidades de novos trabalhos. Arrependida, reativou suas redes meses depois.
“A pessoa ‘canceladora’ se sente como uma espécie de justiceira social; não abre espaço para o diálogo, só enxerga uma versão dos fatos. A pessoa que promove o cancelamento da outra tem uma visão de tudo ou nada – classificamos na psicologia como pensamento dicotômico, uma distorção cognitiva que enxerga situações ou o indivíduo como 100% ruim ou 100% bom, e o perigo está justamente nisso, ninguém consegue ser assim, nem ela mesma. Isso pode gerar uma busca pela perfeição inexistente. Cancelar uma pessoa por uma ação é cancelar toda a complexidade humana inerente, é a identidade de alguém resumida a um único erro. Essa forma intolerante de punir não abre espaço para o arrependimento, e dificulta a mudança do comportamento indesejado, muitas vezes tendo o efeito oposto, quando as vítimas também podem replicar esses comportamentos se tornando possíveis agressores”, pontuou Bruna.
Além de danos materiais, os envolvidos em linchamento virtual (tanto cancelador quanto cancelado) podem sofrer danos na saúde mental.
Segundo a psicóloga, para a ciência, toda causa de transtorno mental é multifatorial (fatores genéticos, ambientais, história de vida, personalidade, etc.), portanto, não podemos dizer que o cancelamento tem relação de causa/efeito direta para o desenvolvimento de algum transtorno mental ou traços como transtornos depressivos ou transtornos de ansiedade, por exemplo, que são os mais comuns quando essa forma de abuso psicológico acontece, porém o cancelamento e suas consequências podem ser sim fatores desencadeantes para tais, dependendo do indivíduo.
A cultura do cancelamento age, muitas vezes, para causar danos como forma de punição. Mas quem tem o direito de afirmar que alguém está “certo” ou “errado”? Valores, ética, pontos de vista, ideologia política, senso comum, culturas, crenças, religiões, condição sexual, são motivos para linchamento virtual. E, se um indivíduo erra ao invadir o espaço e opinião do outro, ele não será perdoado, não poderá ter a chance de aprender com o erro e recomeçar. A partir de então, a sua vida será completamente mudada, julgada e, com sorte, terá chances para um recomeço.
Como seres humanos, não estamos passíveis de erros? Como seres em constante evolução, aprendizado e – alguns – dispostos a mudar a forma como nos relacionamos para melhorar o convívio em sociedade, ao cancelar alguém isso não anularia tudo o que se busca para melhorias? E a oportunidade de reflexão sobre o erro? Os lados implicados em assuntos polêmicos podem gerar conflitos internos ainda piores. Além disso, há casos em que esse linchamento transcende a rede virtual e começa a fazer parte de algo mais intenso e perigoso.
Buscar ajuda profissional para tentar amenizar as consequências na saúde mental dos envolvidos é a recomendação dada por especialistas. “A psicologia como ciência busca trazer ferramentas que ajudam os indivíduos a lidarem melhor com as situações, portanto, na terapia, o indivíduo estaria em um ambiente seguro para expressar todas as suas questões e, por meio do processo psicoterapêutico, entender qual a motivação da ação que o levou a agir daquela forma, qual a melhor maneira de aprender com aquela situação, desenvolver um olhar mais empático e realista por ele mesmo e pelos outros seres humanos, e aprender que a melhor forma de desconstrução não é pela punição pura e sem propósito, mas sim pela informação, a construção a partir do diálogo, e isso não significa anular o que aconteceu, mas aprender novas formas de pensar e se comportar por meio da comunicação não violenta. A psicoterapia também é fortemente recomendada para auxiliar o indivíduo a lidar com os abusos psicológicos que foram sofridos, e no possível desenvolvimento de traços ou transtornos”, destaca Bruna.
Por fim e para refletir, a cultura de cancelamento, além de punir, veio para ensinar sobre o quê? Essa cultura no meio digital que traz à luz discussões sobre várias questões sociais possibilita aprendizados ou gera ainda mais violência? Como absorver algo que desconstrua, gere valor, empodere, evolua e dê oportunidade para o diálogo?
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